José Neto
Imagine-se em uma sala de cinema. O filme passa na
tela e você, sentado ali no escuro, se emociona,
chora, ri. Envolvido, se esquece completamente da
sua vida lá fora. Esquece os problemas, as contas a
pagar, o trabalho, a família. Durante toda a
projeção, é como se a vida exterior não existisse.
Agora, imagine que, de repente, a luz da sala seja
acesa no meio do filme. Você se vê ali com todas
aquelas pessoas e percebe que estava completamente
envolvido pelas cenas da tela. Você se dá conta de
que é “só um filme”, de que não é “real”.
Este exemplo do cinema é uma bela ilustração do que
é a vida de todos nós. Estamos separados da nossa
realidade, envolvidos por uma falsa realidade. É
preciso ligar a luz!
Mas como podemos fazê-lo? Para isso é preciso
entender melhor a falsa realidade na qual estamos
imersos. Na primeira página do livro Fragmentos de
um Ensinamento Desconhecido, Ouspensky escreve:
“Mas, onde começava esse caminho novo ou perdido eu
era incapaz de dizer. Já reconhecera então, como
fato inegável, que, para além da fina película de
falsa realidade, existia outra realidade de que,
por alguma razão, algo nos separava. O ‘milagroso’
era a penetração nessa realidade desconhecida.”1
Vivemos angustiados com todos os problemas que
enfrentamos na vida. O fluxo de nossos pensamentos,
emoções e desejos torna este mundo real. Mas, em
certos momentos, somos tocados por uma sensação
estranha de maravilhamento. Um belo pôr do sol! Uma
noite de lua nova com um céu coberto de estrelas!
Uma música que nos toca profundamente!
Nesses momentos algo de milagroso acontece e somos
transportados para um outro mundo. Eles se
contrapõem ao nosso cotidiano agitado e, no íntimo,
suspeitamos que algo está errado. Não sabemos o
quê, nem como resolvê-lo, mas pré-sentimos que “as
coisas poderiam ser diferentes”, que vivemos em uma
fina película de falsa realidade.
Mas como ela se forma? No livro Do Todo e de
Tudo,afirma-se que foi implantado, “a título
provisório nos seres humanos, um certo órgão que
tem propriedades tais que eles perceberiam, dali em
diante, a realidade ‘às avessas’, e que toda
impressão repetida, de origem exterior,
cristalizaria neles os dados necessários ao
aparecimento de certos fatores que provocam as
sensações de ‘gozo’ e de ‘satisfação’.” 2
A primeira função do “órgão Kundabuffer” é
desconectar o ser humano da realidade, ou seja,
fazer com que ele veja tudo às avessas. Confundir o
que ouvimos. Levar-nos a tomar tudo como pessoal, a
agir sem pensar, a não analisar as situações que
vivemos, etc.
Mas só isso não seria suficiente! Ainda poderíamos,
mesmo “cegos” e por acidente, conectar-nos com o
Milagroso. Daí a necessidade da segunda função, ou
seja, desviar nossa energia para ser utilizada em
outras coisas, gerando gozo e satisfação, como, por
exemplo: nosso falar interno incessante, nosso
devaneio, as explosões de emoções negativas e os
desejos que são senhores de nossa vida.
Talvez nem percebamos, mas sentimos muito prazer em
momentos como os de raiva. Até mesmo o stress, tão
na moda hoje em dia, é, na verdade, um estado de
grande excitamento para todos nós. Adoramos
assistir a esse filme, mesmo sem o sabermos.
E como entender de modo mais claro o funcionamento
do Kundabuffer? Gurdjieff explica: “A tendência ao
devaneio deve-se, por um lado, à preguiça do centro
intelectual, isto é, a suas tentativas de se poupar
todos os esforços ligados a um trabalho orientado
para uma meta definida e indo numa direção definida
e, por outro lado, à tendência dos centros
emocional e motor a se repetirem, a guardar vivas
ou a reproduzir experiências agradáveis ou
desagradáveis, já vividas ou ‘imaginadas’.” 3
Suponhamos que aconteça algo e eu seja tomado por
uma raiva muito forte. Minha adrenalina dispara.
Até aí, tudo bem! É preciso ter a energia
necessária para agir rapidamente. Durante um curto
espaço de tempo eu ainda tenho a “mão no jogo”.
Ainda posso ter um pensamento lúcido impedindo que
a raiva conduza toda a minha ação. É nesse exato
instante que falta a presença de uma mente
tranqüila e silenciosa. Nesse momento seria
necessária a intervenção da minha cabeça para eu
tomar atitudes mais centradas. Mas isso não
acontece. Tudo desmorona e ajo como uma fera
acuada.
Ou seja, nosso corpo capta sensações físicas que
são naturais e necessárias. Mas nossa cabeça é
preguiçosa e vive em um constante estado de
devaneio. O que era para ser uma simples
necessidade ou desejo de agir transforma-se muitas
vezes em atitudes e emoções violentas de nossa
parte. O filme está pronto! Quem o projeta é a
cabeça, mas são as emoções e os desejos os
responsáveis por sua produção.
O que podemos fazer para impedir esse fluxo
incessante? A mitologia pode nos ajudar. Os
antigos, para falar da fina película, utilizaram
muitas vezes o tema das muralhas em seus mitos e
histórias. Na mitologia grega temos a Guerra de
Tróia. A bela Helena é seqüestrada e inicia-se o
cerco a Tróia. Helena simboliza a nossa Alma que
foi seqüestrada. Gurdjieff sugere uma relação entre
o Kundabuffer e as muralhas de Jericó, utilizando
um dito do sábio Mulá Nassr Eddin: “ao pleno som
das trombetas de Jericó”. 4 A menção a Jericó não é
um acaso, mas uma pista deixada por Gurdjieff: as
fortes muralhas dessa cidade, que impediam o acesso
à “Terra Prometida”, são a fina película de falsa
realidade. É ela que nos separa do Milagroso, do
“Reino dos Céus”, da “Atlântida submersa”, da nossa
Alma.
Surge então a pergunta: por que essa fina película
de falsa realidade é simbolizada por inexpugnáveis
muralhas? Mais uma vez aqui se revela a grande
sabedoria dos antigos. O que é apenas um véu de
seda transparente transforma-se em complicações de
todo tipo para quem está afastado e esquecido da
busca do Milagroso. O que é uma fina película para
quem está em conexão com o Milagroso é uma muralha
impenetrável para todos nós.
Como podemos derrubar essas muralhas? Como acender
a luz? A grande dica é revelada nos mitos de Tróia
e de Jericó. Tanto o cavalo de Tróia como as
trombetas de Jericó apontam como podemos viver o
Milagroso. As trombetas emitem sons, que são
vibrações utilizadas para nos despertar e
encontrarmos nossa Alma. Trombeta está ligada à
respiração e, logo, ao sentimento. O cavalo
simboliza o trabalho sobre as emoções,
sutilizando-as. A ligação entre os dois símbolos
(trombeta e cavalo) é o sentimento. O verdadeiro e
fino sentimento é atributo da Alma. Temos de
trilhar o caminho do coração e despertar para nossa
Alma.
Mas, antes, é preciso exercitar nossa mente para
que ela esteja presente sempre, pois o “trabalho
sobre si deve começar pelo intelecto” 5. Só assim,
sem ser arrastados pelos nossos desejos e emoções,
é que podemos resgatar Helena, a Bela.
Notas
1 P. D. Ouspensky, Fragmentos de um Ensinamento
Desconhecido. Editora Pensamento, pág. 17.
2 G. I. Gurdjieff, Do Todo e de Tudo. Horus
Editora, pág. 97.
3 P. D. Ouspensky, Fragmentos de um Ensinamento
Desconhecido. Editora Pensamento, pág. 134.
4 G. I. Gurdjieff, no livro Do Todo e de Tudo.
Horus Editora,
pág. 98.
5 P. D. Ouspensky, Fragmentos de um Ensinamento
Desconhecido. Editora Pensamento, pág. 114.
"Os vossos corações conhecem,no silêncio,os segredos dos dias e das noites.Mas os vossos ouvidos têm sede de ouvir finalmente o eco do saber dos vossos corações. Gostaríeis de saber pelo verbo o que sempre soubeste pelo pensamento.Gostaríeis de sentir com os dedos o corpo nu dos vossos sonhos.E está certo que assim o queirais. A fonte oculta da vossa alma deve necessariamente jorrar e correr a murmurar para o mar;e o tesouro das vossas profundezas infinitas revelar-se aos vossos olhos..."Gibran
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