sábado, 31 de julho de 2010

A Fina Película de Falsa Realidade

José Neto



Imagine-se em uma sala de cinema. O filme passa na

tela e você, sentado ali no escuro, se emociona,

chora, ri. Envolvido, se esquece completamente da

sua vida lá fora. Esquece os problemas, as contas a

pagar, o trabalho, a família. Durante toda a

projeção, é como se a vida exterior não existisse.

Agora, imagine que, de repente, a luz da sala seja

acesa no meio do filme. Você se vê ali com todas

aquelas pessoas e percebe que estava completamente

envolvido pelas cenas da tela. Você se dá conta de

que é “só um filme”, de que não é “real”.
Este exemplo do cinema é uma bela ilustração do que

é a vida de todos nós. Estamos separados da nossa

realidade, envolvidos por uma falsa realidade. É

preciso ligar a luz!

Mas como podemos fazê-lo? Para isso é preciso

entender melhor a falsa realidade na qual estamos

imersos. Na primeira página do livro Fragmentos de

um Ensinamento Desconhecido, Ouspensky escreve:

“Mas, onde começava esse caminho novo ou perdido eu

era incapaz de dizer. Já reconhecera então, como

fato inegável, que, para além da fina película de

falsa realidade, existia outra realidade de que,

por alguma razão, algo nos separava. O ‘milagroso’

era a penetração nessa realidade desconhecida.”1

Vivemos angustiados com todos os problemas que

enfrentamos na vida. O fluxo de nossos pensamentos,

emoções e desejos torna este mundo real. Mas, em

certos momentos, somos tocados por uma sensação

estranha de maravilhamento. Um belo pôr do sol! Uma

noite de lua nova com um céu coberto de estrelas!

Uma música que nos toca profundamente!

Nesses momentos algo de milagroso acontece e somos

transportados para um outro mundo. Eles se

contrapõem ao nosso cotidiano agitado e, no íntimo,

suspeitamos que algo está errado. Não sabemos o

quê, nem como resolvê-lo, mas pré-sentimos que “as

coisas poderiam ser diferentes”, que vivemos em uma

fina película de falsa realidade.

Mas como ela se forma? No livro Do Todo e de

Tudo,afirma-se que foi implantado, “a título

provisório nos seres humanos, um certo órgão que

tem propriedades tais que eles perceberiam, dali em

diante, a realidade ‘às avessas’, e que toda

impressão repetida, de origem exterior,

cristalizaria neles os dados necessários ao

aparecimento de certos fatores que provocam as

sensações de ‘gozo’ e de ‘satisfação’.” 2

A primeira função do “órgão Kundabuffer” é

desconectar o ser humano da realidade, ou seja,

fazer com que ele veja tudo às avessas. Confundir o

que ouvimos. Levar-nos a tomar tudo como pessoal, a

agir sem pensar, a não analisar as situações que

vivemos, etc.

Mas só isso não seria suficiente! Ainda poderíamos,

mesmo “cegos” e por acidente, conectar-nos com o

Milagroso. Daí a necessidade da segunda função, ou

seja, desviar nossa energia para ser utilizada em

outras coisas, gerando gozo e satisfação, como, por

exemplo: nosso falar interno incessante, nosso

devaneio, as explosões de emoções negativas e os

desejos que são senhores de nossa vida.

Talvez nem percebamos, mas sentimos muito prazer em

momentos como os de raiva. Até mesmo o stress, tão

na moda hoje em dia, é, na verdade, um estado de

grande excitamento para todos nós. Adoramos

assistir a esse filme, mesmo sem o sabermos.

E como entender de modo mais claro o funcionamento

do Kundabuffer? Gurdjieff explica: “A tendência ao

devaneio deve-se, por um lado, à preguiça do centro

intelectual, isto é, a suas tentativas de se poupar

todos os esforços ligados a um trabalho orientado

para uma meta definida e indo numa direção definida

e, por outro lado, à tendência dos centros

emocional e motor a se repetirem, a guardar vivas

ou a reproduzir experiências agradáveis ou

desagradáveis, já vividas ou ‘imaginadas’.” 3

Suponhamos que aconteça algo e eu seja tomado por

uma raiva muito forte. Minha adrenalina dispara.

Até aí, tudo bem! É preciso ter a energia

necessária para agir rapidamente. Durante um curto

espaço de tempo eu ainda tenho a “mão no jogo”.

Ainda posso ter um pensamento lúcido impedindo que

a raiva conduza toda a minha ação. É nesse exato

instante que falta a presença de uma mente

tranqüila e silenciosa. Nesse momento seria

necessária a intervenção da minha cabeça para eu

tomar atitudes mais centradas. Mas isso não

acontece. Tudo desmorona e ajo como uma fera

acuada.

Ou seja, nosso corpo capta sensações físicas que

são naturais e necessárias. Mas nossa cabeça é

preguiçosa e vive em um constante estado de

devaneio. O que era para ser uma simples

necessidade ou desejo de agir transforma-se muitas

vezes em atitudes e emoções violentas de nossa

parte. O filme está pronto! Quem o projeta é a

cabeça, mas são as emoções e os desejos os

responsáveis por sua produção.

O que podemos fazer para impedir esse fluxo

incessante? A mitologia pode nos ajudar. Os

antigos, para falar da fina película, utilizaram

muitas vezes o tema das muralhas em seus mitos e

histórias. Na mitologia grega temos a Guerra de

Tróia. A bela Helena é seqüestrada e inicia-se o

cerco a Tróia. Helena simboliza a nossa Alma que

foi seqüestrada. Gurdjieff sugere uma relação entre

o Kundabuffer e as muralhas de Jericó, utilizando

um dito do sábio Mulá Nassr Eddin: “ao pleno som

das trombetas de Jericó”. 4 A menção a Jericó não é

um acaso, mas uma pista deixada por Gurdjieff: as

fortes muralhas dessa cidade, que impediam o acesso

à “Terra Prometida”, são a fina película de falsa

realidade. É ela que nos separa do Milagroso, do

“Reino dos Céus”, da “Atlântida submersa”, da nossa

Alma.


Surge então a pergunta: por que essa fina película

de falsa realidade é simbolizada por inexpugnáveis

muralhas? Mais uma vez aqui se revela a grande

sabedoria dos antigos. O que é apenas um véu de

seda transparente transforma-se em complicações de

todo tipo para quem está afastado e esquecido da

busca do Milagroso. O que é uma fina película para

quem está em conexão com o Milagroso é uma muralha

impenetrável para todos nós.

Como podemos derrubar essas muralhas? Como acender

a luz? A grande dica é revelada nos mitos de Tróia

e de Jericó. Tanto o cavalo de Tróia como as

trombetas de Jericó apontam como podemos viver o

Milagroso. As trombetas emitem sons, que são

vibrações utilizadas para nos despertar e

encontrarmos nossa Alma. Trombeta está ligada à

respiração e, logo, ao sentimento. O cavalo

simboliza o trabalho sobre as emoções,

sutilizando-as. A ligação entre os dois símbolos

(trombeta e cavalo) é o sentimento. O verdadeiro e

fino sentimento é atributo da Alma. Temos de

trilhar o caminho do coração e despertar para nossa

Alma.

Mas, antes, é preciso exercitar nossa mente para

que ela esteja presente sempre, pois o “trabalho

sobre si deve começar pelo intelecto” 5. Só assim,

sem ser arrastados pelos nossos desejos e emoções,

é que podemos resgatar Helena, a Bela.



Notas

1 P. D. Ouspensky, Fragmentos de um Ensinamento

Desconhecido. Editora Pensamento, pág. 17.
2 G. I. Gurdjieff, Do Todo e de Tudo. Horus

Editora, pág. 97.
3 P. D. Ouspensky, Fragmentos de um Ensinamento

Desconhecido. Editora Pensamento, pág. 134.
4 G. I. Gurdjieff, no livro Do Todo e de Tudo.

Horus Editora,
pág. 98.
5 P. D. Ouspensky, Fragmentos de um Ensinamento

Desconhecido. Editora Pensamento, pág. 114.

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